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O Escritor da Madrugada: A vida que flui em Uba

Mais um belíssimo conto neste meu último dia de férias de verão deste ano. Embora seja do Escritor da Madrugada, a menos do segundo e do terceiro parágrafo, o texto foi escrito à tarde:

   Então viera a chuva; cada gota uma lágrima daqueles que se foram. Também cruzou o céu dois aviões em direções quase paralelas, sentidos opostos, foi por pouco. E não havia mais nada a se lembrar daquela tarde. Trocou-se às 10h como todo dia; entrou no mercado às 11h, como todo dia; almoçou às 13h, mas ela não estava na praça. Saiu às 23h, como todo dia.
   Fluir é uma palavra bonita, como "idôneo". De repente outras pessoas cumprem o sonho que cumprira outrora e você já não vê nisso tanto brilho, porquanto há novos desafios. Contudo, outros não vencem as primeiras etapas e integram as águas opacas.
 
   A vida flui. Às vezes laminar, às vezes turbulento, outrossim, correntezas, outrossim, calmarias ou calmarias tensas de estar em um fino, plano, quieto riacho tendo perdido parte da tripulação e estranho por tantos barcos idênticos, alinhados ou perdidos e comuns. Rochas, águas densas, deltas, águas rasas, entraves nos distanciam do outro e de nós mesmos. Cachoeiras, águas calmas, confluências, mergulhos, horizontes abrem-se em distintas coordenadas, reencontros.
   Os caminhos por onde Umberto (com U mesmo; ou Uba, como ela o chamava) andava eram feito a linha de corrente de um fluido incompressível, a energia mecânica sempre constante, pois fugia do atrito. Estava estático, até o almoço do sábado, quando ela anunciou ter ganho a bolsa atleta e, portanto, partiria para Ribeirão Preto para o terceirão em um cursinho particular.
   No domingo, trocou-se às 10h; chegou ao mercado às 11h; almoçou às 13h com uns colegas de serviço e saiu de lá às 22h, uma hora antes, para não mais voltar. Pagou o aluguel, sumiu da cidadezinha turística com destino ao interior paulista.
   Emprego tem, mas só para quem sabe ou para quem é esperto. A praça Camões era seu ponto de estagnação, onde recitava os versos do português às crianças que se admiravam com a estátua. À noite olhava carros em um barzinho perto da nove. Mas mendigo é mendigo; a concorrência o expulsou do bar e, a prefeitura, da praça, oferecendo um abrigo.
   Todavia a concorrência cobrava para não riscar e logo ia embora. Uba arrumou um bar mais afastado onde garantia uns R$ 85,00 por fim de semana ficando até o final das festas fazendo a recolha. Uma noite foi formatura e ela estava lá. Noutra manhã, uns carecas pintados pediam dinheiro na Vargas. Ficou frequente; então colou lá na baixada, arrumou uma bermuda, rapou a cabeça e foi também. Novamente, Gabriela estava lá.
   -Passou em que?
   -Economia
   -Mas não queria ser físico?
   -Pois é. E tu, vai pra onde?
   -Vou é ficar, Educação Física. Deix'eu apresentar. Aí Manú, esse aqui é o Umberto, nós éramos amigos lá em Capitólio. Acho que vocês vão ser da mesma turma. A sua é Economia e Controladoria?
   -Não, só economia mesmo.
   -Que pena, o bacharel é noturno, mas a gente se vê por lá.
   -Bem... Parabéns, Ela, parabéns Manú... Tenho uns amigos me esperando.

Jared as little beggar by ~CzaShinobi, DeviantART

   "Só economia mesmo", por sorte existia um curso em que a frase servisse. Mas foi o "éramos amigos" que pesou em Uba. Estudaram juntos sete anos, da terceira série ao primeiro do ensino médio, quando ele, por imposição do destino, entrou para o mercado, onde ainda a via por um ano ali na praça. Campus! Apelido todo mundo tem, entra como Uba, diz que tem vergonha do nome verdadeiro. O curso é noturno, qualquer um pode assistir, fechado! Encontrou vaga no alojamento de estudantes e emprego na cantina da química pela manhã. Quem lá se interessaria por descobrir sua vida?
   Errado, Isabela Balbo Jardim, do primeiro ano do Bacharelado em Ciências da Informação e da Documentação. Quando a conheceu em frente ao lago, Uba já era veterano, embora nunca ninguém visse suas notas que, quase sempre, eram vistas pelo número na faculdade.
   Somente uma vez se confundiu, guardou a prova em branco e entregou a correta. Correu até o professor, pediu de volta, pois faria a substitutiva.
  -Lembre de, ao menos, pôr o nome na próxima!
Isabela by ~Shercan, DeviantART
   Isabela, gata ribeirão-pretana. Logo no primeiro dia, uns quatro a cercavam. Contudo seu interesse era em um mineiro conhecido nesta história. Ele ouviu, olhou, gaguejou, confessou: 
  -Uba de que?
  -Umberto
  -Beto?
  -Beto, é, pode ser.
  -Você é o carinha lá da química né?
  Depois de um ano, quem lá negaria que passou em economia. Aluno de transferência não fica com o nome na lista da fuvest... Ainda mais mentir diante de uma deusa.
  -Na verdade faço economia, mas trabalho lá de manhã.
  -Uau, como dá conta?
  -É noturno e a cantina nem sempre fica cheia.
  -Sei, também te vejo lá na FEA...
  -...
  -Quero dizer, meu... irmão estuda lá e eu... eu acho que te vi indo pro CEFER ver a Gaby da... Ai meu Deus, ou eu te vi indo pro aloja e...Ai droga, tchau.
Swimmer by ~complejo, DeviantART
   Isabela não desistiu, entrou para a equipe de natação, conversou com Ela, perguntou de Umberto, nada de orkut, facebook, lista de vestibular, listas de transferências. Umberto não existia pra o Google.
   Nas férias de julho ele desapareceu e não voltou no semestre seguinte, em que Gabriela transferiu-se para São Paulo para integrar a grande equipe de Pinheiros.
    Uba investiu todo seu dinheiro da cantina e, em fevereiro seguinte, caminhava novamente na ponte do lago da USP, careca, com a lista de aprovados na mão, onde encontrou uma bela garota, Ela, Isabela. E a beijou.
   Umberto Teodoro forma-se no final do ano em tempo recorde. Viverão felizes para sempre.

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